Ocupação Lydia Hortélio

Pais, mães, irmãs e irmãos, avôs, avós, tios e tias, padrinhos e madrinhas, educadores infantis, profissionais da área de saúde da criança, equipes de creches e Emeis, pré-escolas e berçários… este evento é fundamental para o aprimoramento do nosso olhar sobre a criança! Clicando…

Fraternurando…

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em 1756, século XVIII, em Salzburg, na Áustria e compôs, inspirado em uma canção infantil francesa chamada “Ah! Vous dirai-je, Maman” (“Ah! Vou te contar, mamãe.”), as “Doze variações para piano”. Essa melodia ganhou letras pelo mundo. Letras mesmo: canta-se utilizando o abecedário em diversos idiomas. Mas também ganhou luzes celestiais: virou estrelinha que brilha. E brilha até hoje, século XXI, em muitos lugares do mundo, especialmente dentro das casas onde vêm à luz novas irmãzinhas, como a Jennifer acalentando seu irmão Gustavo, novo brasileirinho, entoando a versão que trouxe no coração, desde pequenina, do Japão onde nasceu…

Virtu…ar com Lunetas…

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado respondeu ao “Lunetas”,  equipe de comunicação do Instituto Alana, que coloca, como eles dizem, “Lentes de aumento sobre o universo das infâncias”. A matéria já está no ar! Ou melhor, no virtu-ar!

https://lunetas.com.br/cancoes-de-ninar/

https://lunetas.com.br/cancoes-de-ninar-brasileiras/

Lunetas: A capacidade auditiva é o primeiro sentido desenvolvido por um indivíduo? E é também o último sentido que perdemos ao morrer? O que isso nos diz sobre a importância dos sons ao longo de toda a vida?

Silvia: Embora o desenvolvimento embrionário não tenha sido tópico de minha pesquisa de doutorado sobre as canções de ninar, que resultou no livro “Canção de ninar brasileira: aproximações”, meus estudos para o acompanhamento de ‘famílias recém-nascidas”, durante os períodos pré e pós-natais e infância inicial de suas crianças incluíram este tema. Sabe-se, até o momento, que o primeiro sentido que se desenvolve é o tato.  A audição do feto, porém, é um sentido importantíssimo na sua comunicação com a mãe e com o mundo exterior. Mais importante é pensarmos que a audição é um forte aliado na adaptação inicial do recém-nascido: batimento cardíaco da mãe, vozes conhecidas, cantigas escutadas no último trimestre de gravidez são sonoridades familiares ao bebê e podem acalmá-lo em situações de desconforto adaptativo.

Lunetas: Quando o bebê ainda está na barriga, as canções de ninar têm impacto sobre o seu desenvolvimento? Como isso acontece, e como se reflete depois?

Silvia: Os ruídos e sons, organizados musicalmente em canções ou não, fazem parte do ambiente do corpo materno e, certamente, influenciam a vida do bebê intra-útero, como todos os demais elementos e estímulos. O corpinho do feto está contido pelo da mãe, que está contido pelo ambiente conjugal e familiar, que está contido pelo ambiente comunitário, que está contido pelo ambiente econômico-social, e assim por diante. São ambientes inter-relacionados que se afetam mutuamente. Em geral, tendemos a observar e buscar compreender como afetamos os bebês, quase como forma de nos desviarmos do impacto transformador que eles exercem sobre nós. A chegada de um bebê renova mesmo o mundo, mas somos muito conservadores para aceitar isso. Guimarães Rosa escreveu, no “Grande Sertão: Veredas”: “ O menino nasceu, o mundo tornou a começar”.

Quanto à canção de ninar, ela é um gênero poético-musical que nasce especialmente na hora de acalmar e levar ao sono as crianças pequenas. Por isso suas denominações: Dorme nenê, Cantiga para adormecer, Nana nenê, Canção de ninar. Vale lembrar que muitas canções de ninar, por suas qualidades estéticas e formais, ultrapassam essa funcionalidade mais imediata e tornam-se composições artísticas (por exemplo: “Acalanto”, de Dorival Caymmi; “Tudo tudo tudo”, de Caetano Veloso e outros). Enquanto objeto de arte, o acalanto ganha um potencial sensível, pois amplia a capacidade e o prazer de conhecer o mundo e a si mesmo.

Além disso, a canção de ninar cuida não apenas do adormecer das crianças, mas dos sentimentos dos cantadores. Por isso, o conteúdo dessas canções revelam, muitas vezes, as inquietações dos adultos, suas necessidades e dificuldades, seus temores, suas lembranças de infância, etc. Cuidando de si mesmos, certamente este adultos estarão cuidando do ambiente em torno do bebê.

Lunetas: É verdade que as canções de ninar têm a mesma estrutura no mundo todo? Pode explicar por que, e como é essa estrutura?

Silvia: Não estudei as canções do mundo todo, mas certamente o efeito hipnótico das canções de ninar resulta de certos recursos musicais como brevidade, repetição, monotonia, lentidão, entre outros. A pesquisa de campo, bibliográfica e fonográfica das canções brasileiras, permitiu identificar uma importante unidade estética dos acalantos: o som totalmente nasal “hum”. Valeria uma continuidade do estudo desta presença em canções de outros povos e culturas.

Lunetas: As canções de ninar brasileiras têm alguma característica preponderante? Se sim, qual?

Silvia: Sim, podemos dizer que as canções de ninar tradicionais brasileiras, anônimas e transmitidas oralmente transportam elementos das principais vertentes (indígenas, africanas e europeias) que formaram a cultura brasileira. Do ponto de vista sonoro, por exemplo, a pregnância da vogal “u” em palavras e elementos originários dessas vertentes, identificáveis no texto das canções. Ou seja, a hipótese é de que o som de “u” seja um elemento integrador das diversas vertentes culturais formadoras do Brasil, que vem sendo transmitidas aos pequeninos nascidos no Brasil. Do ponto de vista do conteúdo, nota-se um grande número de canções que falam do cansaço materno, do acúmulo de tarefas, da pobreza, de medo e terror, do boi, do papão, assim como de temas e figuras protetoras, como anjos, santos, passarinhos, papai, mamãe, coruja. O fato do Brasil ter sido um país que adotou por 400 anos o regime escravocrata, deixou marcas nas suas canções de ninar também.

Lunetas: Diz-se que a voz materna é o som de maior impacto para o bebê. Está correto afirmar isso? Por que isso acontece? E qual a diferença da voz de outros cuidadores, como o pai, a avó, por exemplo?

Silvia: Este tema não faz parte do meu estudo, mas sabe-se que a voz da mãe é rapidamente reconhecida pela criança e que todas as vozes familiares a ela durante a gestação, especialmente no último trimestre, serão reconhecidas após o nascimento.

Lunetas: Sabemos que, no Brasil, ainda se responsabiliza majoritariamente a mãe pelos cuidados com o bebê, contribuindo para uma sobrecarga da mulher e o afastamento afetivo do pai. Como fortalecer o vínculo paterno por meio das canções de ninar?

Silvia: Certa vez, realizei um atendimento domiciliar pós-natal para um casal cujo o bebê estivera internado por 20 dias na UTI neonatal. O pai desta criança, comovido e preocupado com a situação do bebê e da esposa, compôs uma quadrinha que falava da força do menino Pedro, relacionando-a com a permanência de uma pedra e com sua filiação a uma pedrinha preciosa (a mãe). Tanto o pai quanto a mãe começaram a observar que ao cantar este refrão, durante as visitas na UTI, o bebê apresentava melhoras nos sinais de vitalidade e por isso, a adotaram quase como “hino”. Relatou-me o pai que, certa vez, ao sair do hospital, tendo deixado sua mulher sozinha com o bebê, desabou a chorar com criança no carro e só se acalmou ao cantar o “hino do Pedro”. Este relato é bastante significativo do efeito curativo do canto para pais e filhos!

Vale pontuar também que os acalantos compostos por artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Dorival Caymmi tiveram suas origens na experiência inicial de paternidade deles.

Lunetas: Você poderia sugerir 10 músicas para montarmos uma playlist bem bacana de canções de ninar brasileiras?

Silvia:

Acalanto de Planta – LP: Bloco da Palhoça/ Beatriz Bedran

O Besouro – CD: Abra a Roda Tin Dô Lê Lê/ Lydia Hortélio

Sapo Cururu – CD: Oh! Bela Alice / Lydia Hortélio

Murucututu – CD: Murucututu/ Eugênio Tadeu e Miguel Queiroz

Nananenem – CD: Paisagens/ Ivan Vilela

Era uma vez – CD: Canções de Ninar/ Palavra cantada

Essa Menina – CD: Brincadeira de Viola/ paulo Freire

Acalanto – Dorival Caymmi

Acalanto para Helena – Chico Buarque

Tudo tudo tudo – Caetano Veloso

No link abaixo estão as gravações de pesquisa de campo e fonográfica

http://www.primeiromovimento.com/cd-do-livro-cancao-de-ninar-brasileira-aproximacoes

 

 

 

 

 

Canção de ninar brasileira: Aproximações – Lançamento

De tese a livro

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Adélia Bezerra de Meneses com Silvia.

O livro “Canção de Ninar Brasileira: Aproximações” é fruto da pesquisa de doutorado de Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado, sob orientação da professora Adélia Bezerra de Meneses, para o Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH, USP. Na defesa, em 2012, a tese recebeu recomendação de publicação. Sob os cuidados editoriais da Editora da Universidade deo Paulo, este livro vem agora a público, acompanhado de um CD com 24 canções inéditas, recolhidas em pesquisa de campo e pesquisa fonográfica, mixadas e masterizadas por João Milliet.

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Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

O lançamento ocorreu no dia 22/03/18, na livraria João Alexandre Barbosa, no Complexo Brasiliana, Cidade Universitária. O evento foi aberto com uma roda de canção de ninar, com participação dos músicos Suzana Salles, Ivan Vilela, Lucilene Silva, João Milliet, Gabriel Milliet e Thar.

Confira a gravação das apresentações musicais durante o evento:

O livro

Com prefácio da filósofa e professora Olgária Chain Féres Matos, o livro apresenta uma visão interdisciplinar da canção de ninar brasileira, aproximando o leitor de diversas facetas deste objeto cultural: traços poéticos, musicais, psicológicos, sociológicos que foram se desvelando a partir do estudo literário das canções.

O livro foi estruturado em três partes, intituladas por figuras significativas da cultura tradicional da infância no Brasil: “O Boi”, “A Coruja”, “O Sapo”. O surgimento delas como núcleos reunidores de reflexões, na arquitetura do livro, resultou do próprio processo de pesquisa em que a escuta atenta, a análise e interpretação de canções de ninar da tradição oral brasileira e de acalantos compostos por artistas brasileiros foram abrindo caminhos para o conhecimento deste gênero poético-musical.

“O Boi”, que desencadeou principalmente temas sociológicos, baseou-se nas canções: “Boi da Cara Preta”, da tradição oral, e em “Acalanto”, de Dorival Caymmi. “A Coruja”, que proporcionou a identificação do ‘hum’, som nasal, como unidade estética do acalanto, baseou-se nas canções: “Murucututu” (tradição oral) e em “Tudo tudo tudo”, de Caetano Veloso. E, “O Sapo”, que suscitou temas psicológicos, da melancolia, da monotonia, do efeito hipnótico, da ação “termodinâmica” das canções, baseou-se em “Sapo Cururu” (tradição oral) e em duas composições autorais: “Acalanto para Helena”, de Chico Buarque e em “O filho que eu quero ter”, de Vinícius de Moraes. Além destas, há canções de compositores contemporâneos e outras colhidas em pesquisa de campo, nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que dão corpo e ajudam a caracterizar este gênero poético-musical e mostrar sua importância como um dos primeiros objetos de arte a que o ser humano é exposto.

A autora

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado é graduada em Psicologia e, além de psicoterapeuta, criou e desenvolveu, desde 1985, o atendimento psicológico às famílias de crianças recém-nascidas, como uma ação de psicoprofilaxia da infância. O desenvolvimento de uma Psicologia brasileira preventiva, comprometida com ações vinculadas mais ao “cuidar” do que ao “tratar”, sempre esteve em seu horizonte profissional, impulsionando ações e reflexões de “pueri-cultura”, ou seja, cultura da e para a infância inicial. Assim, o início do percurso que culminou nesta obra encontra-se em uma intenção ampla e anterior a ela.

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Tornar-se irmã – Tornar-se irmão

Em maio deste ano, participei de uma roda de conversa com educadores infantis e, depois, com os pais da Escola Grão de Chão, cujo tema foi “Nascendo como irmão/ã”. Foram muito enriquecedoras a troca de experiências e a constatação de que o ambiente escolar pode favorecer a construção de vínculos “fraternos”, principalmente quando a escola, como a Grão de Chão, trabalha, reunindo crianças de diferentes idades, ou seja, sem separá-las por faixas etárias, facilitando a criação de elos entre maiores e menores, velhos e novos, fortes e frágeis. A Escola Grão de Chão foi fundada em 1984 e, com seus 33 anos, conserva-se aberta e acolhedora do novo. Ao sair do Fórum de Conversa com Pais, em que encontrei casais especialmente interessados no estabelecimento de vínculos amorosos e equilibrados entres seus filhos, pensei que urge amadurecermos a ideia de uma licença fraternidade, criando a oportunidade da criança que acabou de receber um(a) irmão(a) poder ficar em casa, sem prejuízo escolar. Trata-se de uma ação tão importante quanto a ampliação das licenças maternidade e paternidade, já que tornar-se irmão é um processo de transformação profundo e fundamental para a construção de um mundo fraternal. Buscando dar voz às crianças que ainda não falam (os infantes), a Primeiro Movimento – Equipe de Psicologia para o Pré e Pós-Natal e para a Primeira Infância reconhece a importância e estuda esta ação.

A íntegra da palestra realizada:

I.Nascendo como irmã ou como irmão

Por que este título? Porque, em geral, se diz que uma criança ganhou um irmão e esta perspectiva é parcial, pois, nela, irmão refere-se àquele que chega e não àquele que estava ali, compondo um determinado grupo familiar e que, agora, com a chegada de uma nova criança, está convocado, pela vida, a se transformar em irmã/o, tal como ocorreu com seus pais quando, ao ganhar o primeiro filho: tornaram-se pai e mãe. Nosso foco aqui será o processo de tornar-se irmã/o e não o de ganhar irmão.

Começo estas reflexões expressando um desejo e aproveito, para isso, uma bonita frase do Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Escreve ele: “O menino nasceu, o mundo tornou a começar. ” O mundo nasce de novo. Escolho essa sentença-guia, como desejo de que, em nossas atividades como educadores, possamos ir reconhecendo e respeitando os traços profundamente renovadores transportados pelas crianças pequenas. Elas renovam o mundo, se nos permitirmos, nós, os que já habitamos nele, a acolher o novo.

Certa vez, conversando com Lydia Hortélio, essa grande educadora e pesquisadora da cultura da infância brasileira, ouvi algo mais ou menos assim: “ Tenho certeza que um dia veremos acontecer uma revolução iniciada pelas crianças; para isso precisamos apenas deixar suas expressões livres e as ajudar a canalizá-las. ” Nesse caminho da “revolução infantil”, arrisco-me a dizer que a observação cuidadosa e acolhedora dos movimentos e dinamismos familiares, que ocorrem neste tempo de nascimento como irmã/o, poderiam nos fornecer pistas autênticas e orgânicas para a construção de um mundo fraternal. Isto me lembra os versos do Caetano Veloso, em Flor do Láscio Sambódromo; dizem assim: “Eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria.” Frátria seria uma construção social baseada em igualdade, simetria, mesmo plano, ombro-a-ombro, solidariedade. Talvez a fraternidade seja a relação humana mais paradigmática da justiça e do equilíbrio de forças. Não à toa São Francisco de Assis, o santo que inspira o ativismo ecológico e não antropocêntrico, escolheu os pronomes irmão e irmã como tratamento para astros, seres vivos e até mesmo para a irmã morte.

II. Frátria

Para termos uma ideia dos óculos que usamos para ler o fenômeno de tornar-se irmã/o e o quanto nossa visão não favorece a frátria, formei uma frase com expressões frequentes de se ouvir neste contexto da chegada de uma nova criança: “Ele/a está querendo chamar a atenção, está com ciúme. É que, desde que ganhou um irmãozinho, perdeu o trono”. “Querer chamar a atenção” e “estar com ciúmes” tornaram-se clichês psicológicos dos quais trataremos adiante. Começo esta reflexão por “Ganhar irmã/o” e “perder o trono”. Ganhar e perder são ações que nos remetem a experiências de competitividade, alinhadas com um modo de convivência onde o indivíduo se sobrepõe ao coletivo, onde tronos são disputados, territórios são invadidos, conquistados ou perdidos, onde tende-se a ver fortes-vencedores diferenciados de fracos-vencidos. Ou seja, claramente uma perspectiva de poder.

Não é de se estranhar que, na base da cultura ocidental judaico-cristã, encontremos, logo no Gênesis, a estória de dois irmãos, Caim e Abel, em que ocorre um fratricídio. Trata-se de uma narrativa mítica em que Caim, movido pelo ciúme, porque Iahweh se agradou mais das oferendas “pecuaristas” de Abel do que de seus produtos agrícolas, matou seu irmão e, como punição divina, passou a precisar de lutar pela fertilidade do solo; com isto, ocorreu a inauguração de uma descendência violenta. A Bíblia cita um cântico selvagem que, segundo profundos conhecedores do texto em aramaico, exegetas e tradutores, testemunha essa crescente violência. Trata-se de um canto em homenagem ao tatataraneto de Caim (talvez cinco ou seis gerações após Caim), chamado Lamec, que se tornou um grande herói do deserto. É ele mesmo quem canta para suas mulheres:

“Ada e Sela

Ouvi minha voz,

Mulheres de Lamec,

Escutai minha palavra:

Eu matei um homem por ferida,

uma criança por contusão.

É que Caim é vingado sete vezes

Mas Lamec, setenta e sete vezes. ” (Gênesis 4, 23-24)[1]

Assim, remonta a aproximadamente 5000 anos o despontar de uma civilização bélica, inaugurada por um fratricídio e, embora tenhamos na mesma história ocidental figuras sagradas e significativas de vida fraternal, nosso olhar está contaminado por essa estrutura violenta do poder. Então é preciso nos perguntarmos: será que a experiência de chegada de uma nova criança, a experiência de nascer como irmão é mesmo carregada desta competitividade que se traduz, por exemplo, no uso das expressões “ganhar irmão” e “perder o trono”? Ou estaria o nosso olhar adulto-ocidental viciado nos modos e funcionamentos do poder e, desta maneira, impregnando a experiência de tornar-se irmão com disputas, invasões, figuras perdedoras e ganhadora de territórios? Não estaríamos assim perpetuando os dinamismos de uma sociedade competitiva? Além disso, existiria algum caminho alternativo? Como poderíamos renovar nosso olhar em relação ao nascimento de e como irmão?

Alguns relatos da minha experiência acompanhando famílias no período pós-natal poderão nos dar pistas para estas questões, mas, primeiramente, apresento um trecho do livro Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo, da filósofa Marilena Chauí, que foi uma espécie de achado no meu percurso profissional, justamente por expressar, com clareza, a relação de troca amorosa complexa e profunda que percebia ocorrer nas relações iniciais das mães, pais e outros familiares com os bebês, mas que nunca conseguia formular em palavras. Penso que este trecho abre uma perspectiva potencialmente capaz de reorientar nosso olhar contaminado pelo prisma da competividade e do individualismo, propondo uma compreensão da dinâmica do amor. Escreve ela:

“ O menino que pede à mãe para consolá-lo da dor que ela sente não rivaliza com ela, não lhe pede um reconhecimento que a destituiria de seu ser […]Pede-lhe que não fique ensimesmada na dor, que a converta em relação com outrem, em gesto de amor. A mãe compreende instantaneamente o pedido e se se devota à criança não é porque cede a uma força aniquilante, mas porque ‘sabe’ que saindo de si volta a si, que a devoção dada a outro é também a maneira de se amar. Não há indistinção; há troca e reversibilidade de lugares diferenciados e comuns. ‘Egocêntricos’, somos excêntricos (no sentido duplo dessa palavra). […]”[2]

Assim, existe eu, existe outro, são distintos, “não há indistinção”. São distintos, mas em movimento de “troca e reversibilidade”, comunicação. Ao pedir consolo, o menino desperta a dor da sua mãe. Ela, doída, pode se sentir ferida pelo filho e fechar-se em si, ensimesmar-se ou pode revoltar-se, mas pode também converter a dor que sente em “gesto de amor”, relação de correspondência com o outro, movimento, transição de si ao outro, do outro a si. E, se encontrou esse caminho, a mãe descobrirá que, como diz Chauí, “a devoção dada a outro é também a maneira de se amar”. Não amamos o outro, simplesmente amamos e, por isso, tornamo-nos mais amorosos. Como árvore que a cada galho que se abre, a cada fruto que se produz, torna-se cada vez mais frondosa, capaz de acolher em um mesmo instante, muito mais que uma, duas, três pessoas, filhos ou não, em sua sombra; e acolher diversas espécies de seres vivos em seu tronco e galhos. Nesse sentido, podemos considerar o tempo do nascimento de uma criança, com toda sua complexidade, força e dinamismo, como uma reserva ecológica do amor humano, onde é possível encontrar este núcleo amoroso, com todas suas delícias e dores e pavores. Diferentemente da lógica matemática que diz que quanto mais dou, fico com menos, aqui se estabelece a lógica do amor, que pode superar o individualismo e a competitividade: quanto mais dou, com mais eu fico ou, melhor colocado, quanto mais amor se dá entre nós, mais amorosa fico, ficas, fica, ficamos, ficam todos.

Em resumo, até aqui abordamos o eixo do poder que atravessa milenarmente nossas relações configurando uma sociedade competitiva e, encontramos uma possível abertura de superação disto, na possibilidade amorosa que se evidencia com vigor na relação mãe-filho e, na realidade, em todas as relações intrafamiliares pós-natais, dinamismo que a filósofa formulou tão claramente no trecho lido.

III. Ciúme

Feito isto podemos, então, retomar o sentimento de ciúme, que aparece, quase sempre, como um “clichê psicológico”, acabando por encobrir oportunidades de compreensão de facetas profundas e, a meu ver, maravilhosas deste movimento de tornar-se irmão. É como se ao dizer “esta criança está com ciúmes” obstruíssemos o canal emocional que permitiria não apenas uma comunicação fluente – “trocas e reversibilidades”, como diz Chauí – mas, a ultrapassagem de situações aparentemente sem volta e sem retorno, em um contexto em que, de fato, algo definitivo ocorreu: o nascimento de um irmão. Tanto a chegada ou nascimento de uma criança, quanto a partida ou morte de alguém mergulha a família nesta relação com o que é definitivo. Assim, o nascimento como irmão implica em experimentar o limite do que é definitivo e não tem saída. Mas brinco que há uma doença própria do período pós-natal, chamada “definitivite aguda” que pode contaminar a todos. E aqui começam os enganos familiares e autoenganos, porque nem tudo que está acontecendo será para sempre. Sendo assim, é preciso discernir, e, portanto, escutar atentamente a criança, que está se tornando irmã, antes de revesti-la com qualquer clichê ou explicação fácil.

Voltando ao ciúme. Ele é mesmo um sentimento relacionado com a consciência do fim, do sem saída, do limite absoluto. Quantas vezes as crianças pequenas recém-nascidas como irmãs, não sugerem que o bebê seja retirado da família ou de casa justamente na perspectiva de encontrar uma saída para uma situação que é definitiva? Ou seja, supõe, essa criança, que “se eu tirar o bebê de casa eu acabo com o meu problema”. E, qual é o problema dela? O problema dela não é o seu irmão existir, o problema é deixar-se transformar, ser diferente do que era, tornar-se irmã. Aliás, este é um ponto doloridíssimo nas depressões puerperais ou nas psicossomatizações das ansiedades paternas: o nascimento de um filho é definitivo, não tem volta e a única saída é deixar-se renovar, transformar-se em pai e mãe. Por isso, a maternidade e a paternidade são experiências fortíssimas de aprendizado de flexibilidade.

O ciúme é um sentimento que surge exatamente quando não nos deixamos renovar, ou não nos é possível renovar. É porque eu não quero, não consigo ou não posso me transformar; é por me sentir paralisada diante de uma situação que pede mudança, que eu busco aniquilar o outro que me obriga a esta transformação impossível para mim. Trata-se de um tremendo autoengano! Nesse sentido, ciúme é um indicador de rigidez, sendo, por isso, muito mais provável em adultos do que em crianças; ou, pelo menos, se ocorre na criança, tem muito mais chance de ser ultrapassado.

Talvez todos aqui conheçam estórias, gostosas e divertidas, de crianças que sugerem a devolução do bebê para a maternidade ou sua doação para alguém:

-Mamãe, você estava esperando o nenê nascer. Pronto, já nasceu, agora pode dar ele para alguém.

Ou sugestões mais antropofágicas:

– Mamãe, esse bebê chora muito! Não era melhor ele voltar para sua barriga?

– Não dá para voltar para a barriga, filhinha.

– Dá sim. É só ele virar comida, daí você come ele!

Pode ser que assim tenham nascido as lendas de bruxas e papões! Nós, adultos, ficamos tão assombrados com esses seres fantásticos que comem criancinhas, que ficamos chocados com a ideia desta menina e, rápido, apelamos para o clichê: “Está enciumada, quer destruir a irmãzinha”. Mas, a pior consequência da nossa fuga dos seres fantásticos e do nosso engano de interpretação é esquecermos da queixa real da menina. Simples: “Mamãe, esse bebê chora muito! ” Para uma menina que nasceu em uma casa na qual havia apenas adultos, uma casa até então silenciosa, onde talvez o único choro mais ruidoso fosse o dela, para esta menina, ouvir o choro de um recém-nascido pode ser muito desconfortável, tal como um dia o foi, o seu próprio choro, para seus pais. Neste caso, tornar-se irmão implica em seguidos exercícios adaptativos para se familiarizar com a presença de um bebê recém-nascido, com suas manifestações mais primitivas tais como resmungos, choros, cocôs, xixis, regurgitos, engasgos, soluços, espirros; com suas demandas imprevisíveis de colo e amamentação; e, com seus ciclos estranhos de sono e vigília. Facilitar a adaptação desta criança recém-nascida como irmã a esse plano concreto da experiência de conviver com um bebê é fundamental, para que ela se organize melhor nesse momento, em geral bastante caótico e, por natureza, desequilibrado, do período pós-natal na família.

Inúmeras vezes presenciei pais e mães entristecidos por interpretarem o gesto do primeiro filho, de tampar suas orelhas para não ouvir o choro do bebê, como rejeição ao irmãozinho recém-nascido. Esse é um exemplo de como caímos fácil no clichê do ciúme. O primeiro filho não está rejeitando o irmão, não o está negando, não há ciúme aí, o que há é bom gosto: ele não quer ouvir o choro ruidoso de um bebezinho. Talvez o que mais o ajudaria nesse momento fosse, primeiro, um reconhecimento do desconforto real causado pelo choro; segundo, uma explicação simples e adequada à sua compreensão de que bebês pequeninos choram em vez de falar ou fazer gestos; e, por último, dar dicas e sugestões de como ele pode se proteger para aliviar o desconforto: se afastar, tampar mesmo as orelhas e, dizia-me uma mãe: “Rezar para a mamãe conseguir acalmar rapidamente o bebê.”

IV.Pais de família

Ocorre que também os pais e mães estão se transformando: no nascimento do primeiro filho, tornaram-se pai e mãe e, no do segundo, pai e mãe de família. E família é grupo. Mas, ainda ligados ao aprendizado anterior, os pais e mães tendem a querer repetir o que fizeram para o primeiro com o segundo; levam certo tempo para perceber que são pais de um grupinho e tendem a cuidar das situações por operação de separação e individualização: ou cuido deste ou cuido daquele; um dorme em um quarto, o outro em outro; um fica com a mãe, o outro fica com o pai (o problema é quando nasce o terceiro!); brinco com este enquanto aquele dorme; dou atenção para este quando o outro está na escola. O fato é que com isto cria-se, mesmo sem a intenção, a acentuação da exclusão, ou um ou outro, quando o desafio é fazer a conexão um e outro, cuidar dos dois ao mesmo tempo…

É justamente a criação de soluções reunidoras, que pode dar referências para o filho maior de como acolher o menor, além de facilitar a integração dos filhos, favorecendo assim a configuração do grupo familiar e seus sub-grupos, o dos adultos e o das crianças da casa. É notável o surgimento de expressões, a partir de um ou dois meses depois do nascimento do segundo filho, tais como: “quando as crianças dormirem”, “é hora do banho das crianças”, “o quarto das crianças”, “agora é hora do papai e da mamãe”, etc. Tornar-se pai e mãe de família é descobrir como zelar pelo bem-estar de um grupo e não de dois indivíduos crianças.

V. Tornar-se irmão: primeira “crise existencial”

E tornar-se irmão? Talvez, nascer como irmão, durante a infância inicial, seja uma das primeiras “crises existenciais”, no sentido de experimentar com algum grau de consciência, uma forte transformação da própria vida. Por isso, também é uma das primeiras oportunidades de descoberta e conhecimento dos limites da existência: nascer e morrer, essas extremidades fortes da vida. Nascer como irmão lança a criança na descoberta do ciclo vital: nascer, crescer, poder ser pai e mãe, envelhecer, morrer. Transformação, movimento contínuo: muda o espaço, muda o tempo e muda a vida.

Vamos ver algumas manifestações dessa “crise existencial primeira”, digamos assim, ou primeira tomada de consciência, mesmo que rudimentar, do movimento de transformação inexorável da própria vida. Escolhi alguns trechos breves de relatos da minha experiência com crianças que acompanhei logo no início do processo de se tornarem irmãos, seja nos atendimentos domiciliares pós-natais, seja em orientações de pais no consultório. Para efeito de organização desta exposição, agrupei-os em três campos da experiência: espacial, temporal e vital.

Mudança no campo espacial : 

Este campo refere-se à descoberta do tamanho do próprio corpo, estabelecida na referência do tamanho do corpo do bebê. Trata-se da percepção “repentina” do crescimento. Aparece o maior e o menor.

Esta observação se deu primeiramente nas minhas conversas com as mães. É frequente ouvir que se surpreenderam com o tamanho do(a) filho(a) maior, logo após o nascimento do bebê: “Na primeira vez que o Léo (primeiro filho, 2 anos) foi à maternidade nos visitar, depois que a bebê nasceu, achei que ele tinha crescido muito! De ontem para hoje, era um menino, não era mais bebê”! O nascimento do segundo filho redimensiona o tamanho do primeiro aos olhos dos pais e, com isto, surgem sentimentos e preocupações novas como, por exemplo, o medo de pedir a mais do que o primeiro filho poderia, de fato, dar. Ou ainda, a culpa por não aguentar suas atitudes de “nenezinho”.

Junto com isso, a própria criança está se reconhecendo em seu tamanho e oscila entre ficar pequenina como um bebê (o que costuma-se chamar de atitudes regressivas) ou ficar maior até do que o próprio pai (que podemos nomear, então, de atitudes progressivas)! Há muitas expressões disso, uma delas é o medo que o primeiro filho sente, por ser grande, de machucar o irmão pequeno. Ser grandão (forte) assusta, pois, o “gigante” é potencialmente aniquilador, de alguma maneira percebe que pode machucar o menor (frágil). Ouvi muitos sonhos de crianças de 4 ou 5 anos, que manifestam este tema.

Uma brincadeira “terapêutica” que faço nos atendimentos domiciliares pós-natais é comparar o tamanho das mãos de todas as pessoas da família. Observo a alegria que os maiores sentem não apenas ao ver que cresceram, comparando-se com o bebê, mas ao constatarem que seus pais possuem mãos maiores ainda. Descobrem que estão no “meio” de um grupo; isto gera uma sensação de acolhimento, de cabimento.

Essa oscilação pode ser mais perturbadora para o adulto do que para a criança. Vejam este relato bem-humorado de um avô:

Hora do sono. No quarto do filho (4 anos):

-Mamãe, o nenê vai dormir no seu quarto?

-Sim, ele é pequenininho.

-Posso dormir lá também? Todo mundo junto?

– Quando você era pequenino você também dormiu uns dias no meu quarto. Agora, você já é grande, já pode dormir sozinho.

-Você também já é grande, mamãe. Por que você dorme com o papai?

Mudança no campo temporal:

Este campo diz respeito ao envelhecimento, refere-se a descoberta de ser mais velho do que o bebê, novo, que chegou. A passagem de ter sido o mais novo da casa para ser, agora, mais velho gera uma questão angustiante: o que é que vai acontecer com aquele que é velho? Será descartado? Esquecido? Desaparecerá? Morrerá?

Esta observação nasceu, primeiramente, de uma conversa com uma avó materna, após o nascimento de seu primeiro neto, em um atendimento domiciliar. Perguntada sobre como se sentia como avó, me respondeu: “Parece assim, que o trenzinho andou e que a chegada de um vagão empurra o outro mais para frente…a gente fica mais velha. ”

Vamos ver o trecho de um atendimento domiciliar que ilustra bem isso. Um menino (2 anos e 9 meses) que sempre dormira bem, desde o nascimento de seu irmão, há 15 dias, vinha acordando assustado, no sono da noite e no sono da tarde. Um dia estava com sua mãe olhando pela janela e observou:

-Mãe, o que é aquilo nas costas daquela mulher?

-Ah! Ela é corcunda. Às vezes, as velhinhas têm isso nas costas.

-Ela é velhinha?

-Sim, velhinha.

-Precisa jogar fora?

Esta foi a pista para ajudá-lo em sua angústia. Para este garoto, tornar-se o mais velho, expressão que vinha sendo utilizada pelos familiares, poderia significar ser jogado fora. A mãe se lembrou que no período pós-parto do nascimento deste seu primeiro filho, ela mesma se sentia muito preocupada em voltar a ser como era, ter o corpo que tinha, para não ser rejeitada pelo marido (ou, na expressão do garoto, “jogada fora”). Esta lembrança e escuta empáticas fizeram com que a mãe pudesse acolher mais integralmente seu filho “mais velho”. Para este menino, a garantia de que ele estava bem, que não era “velhinho”, de que estava forte, de que podia dormir sem medo (…de morrer), melhorou seu sono.

Algo semelhante aconteceu em outro atendimento, que intitulo  Metamoforse. Trouxe aqui o desenho de uma garota de 5 anos. Ela o fez enquanto eu conversava com sua mãe e me entregou espontaneamente, na nossa despedida, no encerramento do atendimento. Um breve relato deste atendimento ajuda a compreender o desenho. Quem me atendeu à porta do apartamento foi Gabriela, transcrevo nosso diálogo:

– A minha mãe está acabando de trocar a nenê e já vem. Pediu para a gente esperar um pouco aqui na sala.

– Você é a Gabriela, não é?

-Sou.

– Quando você nasceu, eu vim aqui também. Você era bem pequenininha. Quantos anos você tem agora?

– Cinco. Sabia que minha mãe tirou o tapete velho e este aqui é novo?

Gabriela e eu estávamos sentadas no sofá, enquanto falava, mostrava o tapete novo sob a mesa de centro.

-Bonito, não acha? Comentei.

– Minha mãe jogou fora o tapete velho?

Senti que a pergunta era direta e pedia uma resposta certeira também:

-Não sei o que sua mãe fez com o tapete velho. Pode ser que ela tenha dado a alguém, guardado em algum lugar ou mesmo jogado fora. Não sei. Depois podemos perguntar a ela. Mas, com filho mais velho e filho novinho é diferente: a gente não joga fora, não dá para alguém, não troca um por outro. É diferente…

Gabriela sorriu e, depois de alguns instantes, me convidou para conhecer seu quarto. Senti que nossa conversa iria continuar. Aceitei o convite. Espalhados pelo chão do quarto havia giz de cera, canetinhas, cola, tesoura, folhas de papel e desenhos.

– Quantos desenhos! Você gosta de desenhar, não é?

– Gosto. Você viu o tapete novo do meu quarto?

– Muito bonito, heim? E gostoso para a gente sentar em cima. Sabe o que eu reparei agora? Os seus desenhos, espalhados assim pelo chão, também parecem um tapete. Se você quiser fazer um desenho, enquanto eu converso com sua mãe na sala, seria legal. Mas, só se você tiver vontade.

Fiquei conversando com Fernanda, a mãe das meninas, na sala. Gabriela esteve conosco no começo, depois foi para seu quarto e, ao final do atendimento de sua mãe, me trouxe o desenho de dois tapetes recortados e colados sobre um sulfite, explicando-me:

– Tem dois tapetes. Este é um casulo segurando duas flores e neste, do lado, é a borboleta que saiu do casulo.

Elogiei seu trabalho, suas cores, a borboleta. Disse que tinha gostado especialmente da ideia de um casulo com duas mãos segurando duas flores, que eu nunca tinha visto um desses antes. Acrescentei que os tapetes estavam muito bem feitos, tinham até franjas, parecidas com mãos!

Desenho da Gabriela-1999

A expressão plástica é um ótimo recurso para compreendermos o modo como a criança está. A irmãzinha de Gabriela havia nascido, era a vida nova da casa e ela, Gabriela, a velha. Sua pergunta sobre o que a mãe fez com o tapete velho guardava certa angústia, que foi cuidada com poucas palavras. Seu desenho mostra um estado tranquilo de integrar o novo ao que já estava lá, o velho. Ele expressa esse aspecto reunidor: uma base única, a folha de papel sulfite, reúne dois tapetes – assim como o chão-base da sua casa e do seu quarto reúne as duas irmãs. A borboleta, vida que resulta do processo de metamorfose, é um símbolo forte da transformação; como se Gabriela tivesse compreendido o movimento da mudança, em que a vida não é uma linha cronológica apenas, mas um ciclo que nos torna ligados a tudo.

Agora vamos falar do campo vital, que seriam as expressões de conteúdos relacionados a perceber-se como um ser-com-outros, em processo gradual de autonomia. Na experiência crítica de ser transformado pelo nascimento do irmão, as crianças oscilam entre ser cuidado e protegido, cuidar e proteger do outro e se cuidar e se proteger. As estórias ajudam a compreender melhor.

Ser cuidado e se cuidar

Os pais me descrevem um episódio para exemplificar que o nascimento do 3º filho estava tranquilo para o 2º, de 3 anos de idade porque percebiam que ele conseguia se expressar e pedir o que precisava para se tranquilizar. Relataram-me, então, que certa vez, estavam todos, pais e três filhos, numa festa de aniversário. O 2º filho sempre fora uma criança tranquila, gostava de brincar com os amigos e de conhecer outros novos. Mas, nesta festa, especificamente, a primeira saída de toda a família junta depois do nascimento do 3º filho, o garoto não conseguia brincar tranquilamente. A todo momento aproximava-se de seus pais e perguntava: – Vocês já vão embora? Quando os pais se deram conta de que ele estava vindo repetidamente fazer a mesma pergunta e, por isso, não conseguindo brincar sossegado, convidaram-no para se sentar ali e conversar. Ele imediatamente respondeu:

– Não! Não quero sentar, quero ir brincar.

-Mas toda hora você vem perguntar se a gente está indo embora. A gente diz que não e você volta de novo?!

– Ah! É que eu não quero que vocês me deixem aqui.

– A gente não vai deixar você aqui.

Tudo era o medo de ser esquecido…na festa! Os pais não apenas traduziram verbalmente isso, mostrando ter compreendido o que o preocupava como, contaram-me, que inventaram, naquela hora, uma combinação que virou a “brincadeira da chamada”: “Filho 1? Filho 2? Filho 3?” Como o 3 era nenê, não sabia falar, então alguém da família tinha que responder por ele. Esta invenção não apenas lhe deu segurança para brincar tranquilamente naquela festa, como se tornou rotina familiar, na entrada e saída do carro.

Aqui vemos como, por mais que esta insegurança tenha surgido depois ou em função do nascimento do irmão, e mostra o medo de ser excluído dos cuidados dos pais, não tem nada de ciúme. Revela o esforço do garoto em se proteger na nova dinâmica familiar: ele percebeu que deixara de ser o caçula, sempre atendido (cuidado), para ser maior como o 1º irmão, que pode se virar sozinho (se cuidar). Com força instintiva ele se protegeu, e reivindicou o seu espaço de ter-se tornado maior, mas não o suficiente para ficar sozinho na festa.

Cuidar do outro

Hora do sono. O pai está colocando a filha maior (3,6 anos) para dormir e a mãe, o menor (40 dias), um bebê que tinha cólicas. Cada um estava em seu quarto.

-Papai, eu não consigo dormir.

-Por que será?

-E se o bebê ficar com dor de barriga à noite?

-Ah! Ele vai chorar e te acordar. É isso?

-Não! Eu não vou dormir nem acordar! Eu vou ficar com ele até passar a dor dele.

Na expressão verbal desta garotinha fica clara uma atitude empática, identificada com a dor do bebê, um gestozinho solidário, matéria de fraternidade. Cabe ainda neste campo vital todas as curiosidades e brincadeiras relacionadas com momentos de expressão natural, digamos, da vida: de ser papai e mamãe (ficar grávida colocando almofada sob a camiseta, dar de mamar, colocar filhinho para dormir, etc), as brincadeiras de médico (ficar doente, ir para o hospital, etc), as brincadeiras de morte (fingir que morreu, enterrar bichinhos, rituais de enterro e luto, etc).

Para encerrar minha exposição e ouvir as perguntas e comentários de vocês, gostaria de reformular aquela frase do início desta palestra: “Ele/a está querendo chamar a atenção, está com ciúme. É que, desde que ganhou um irmãozinho, perdeu o trono”. Agora, podemos apresenta-la assim: Ele/a está querendo atenção para entender o que foi que aconteceu. É que desde que ele/a recebeu um/a irmãozinho/a, precisa conseguir abrir espaço para acolher uma intensa transformação: tornar-se irmã/o.

[1] A Bíblia de Jerusalém. Edição em língua portuguesa; Coordenadores e Revisores exegéticos: Gilberto Gorgulho, Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson. Revisores literários: Alfredo Bosi, Antonio Cândido de Mello e Souza e outros. Edições Paulinas: 1985.

[2] CHAUÍ, Marilena. Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo- Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty. Editora Brasiliense: São Paulo, 1981. p.275.

 

A saudade revigora o afeto

“É dura a dor do parto, mas devo partir”. Eis uma expressão popular do desafio da despedida visceralmente relacionado à maternidade.

Frequentemente, encontramos decorando as portas do quarto, da casa ou de outro local onde há um recém-nascido, uma tabuleta com o dizer: “Cheguei”. Sim, chegou para quase todos porque, para a mãe, o bebê também se foi, ao nascer.

Nessa partida encontra-se uma das principais chaves da maternidade: aprender a se despedir. Isto é: deixar alguém ir sem virar as costas, para poder observar aquele que se vai e, deixar-se ir, de maneira clara, sem sair escondido, para poder finalizar o encontro, com ‘tchau’, ‘até logo’ ou qualquer expressão de reencontro. Na situação concreta do bebê: despedir é  não “colar” (de colo) demais, para que haja “respiro”, espaço para crescer; e ir ou deixar ir, sem “descolar” depressa, para poder reconhecer o tempo mútuo de afastamento, deixando o outro em situação segura e de equilíbrio.

Certa vez, cheguei no horário agendado à casa da nova família, cujo filhinho havia nascido há 20 dias. Eram 10 horas e o pai veio atender à campainha, explicando-me que sua esposa estava terminando de tomar banho, pois o bebê ficara acordado durante um longo período na madrugada, tendo conseguido dormir apenas às 7:00 horas da manhã.

Aguardei o casal se aprontar. Então, iniciamos nossa conversa cujo núcleo foi, claro, a experiência trabalhosa diante da resistência do bebê ao sono. O que teria acontecido? Fome? Dor? Frio? Calor? O que? Perguntava-se a mãe. E vai, começou a chorar. Lembrou-se da raiva que sentiu porque o bebê não dormia. “Raiva mesmo! Sei lá, nunca pensei que sentiria isso em relação ao meu próprio filho! ” Sentia-se culpada, chorava e desculpava-se pelo cansaço. O marido aliviava-a reconhecendo vários momentos em que vinha sendo muito atenciosa com o bebê. Depois de esperarmos a fluência de todas estas manifestações, o choro inclusive e depois de termos encarado a raiva de frente, como uma força presente e importante de ser compreendida, contida e potencialmente capaz de reorientar o gesto materno e paterno, a mãe puérpera sentia-se aliviada. Sinal disso foi a mancha redonda e úmida de leite que apareceu na sua camiseta. Disse ela:

– Engraçado, na madrugada eu queria que ele [o bebê] se desligasse de mim. “Chega, dorme e me deixa dormir, caramba! ” E agora, estou com saudades, parece que faz um tempão que não o vejo. Deu vontade de ir acordá-lo. Acredita? Ser mãe é muito louco. Mas que está na hora dele mamar, está, não está?

Neste atendimento cuidou-se bem do gesto de se despedir de uma mãe recente. Ao longo da vida, a despedida tratada saudavelmente, transforma a observação de quem partiu em admiração e o “tchau” ou “até logo”,  em “adeus”. E isso não é apenas coisa de mãe, mas de pai, de filho, de neto, de avós, de ser humano.

Iniciamos este relato com um provérbio que fala sobre a dureza da dor materna e o encerraremos com a grandiosa poesia de Cecília Meireles, onde o bem mais que substantivo é um modo incerto de ser.

A MULHER E O SEU MENINO

Cecília Meireles

à Fernanda de Castro

Mulher de pedra,

que é do menino

que houve em teu doce

braço divino,

– nesse teu braço

que ainda está preso,

plácido e curvo,

à eterna ideia

de um vago peso?

“Vento do tempo

me estremeceu:

ele era pedra

da minha pedra,

mas nunca soube

se era bem meu.

Vento do tempo

passou por mim:

foi-se o menino,

deixou-me assim.

Foi sem palavras

Tão pequenino,

que ia falar?

Talvez soubesse

Eu não conheço

senão meu peito:

há outro lugar?

Têm vindo coisas:

não sei que são.

Coisas que cantam,

coisas que brilham.

Mas ele, não.

E era tão feito

só de ficar

que, embora longe,

sinto-o comigo:

meu braço é sempre

sua cadeira,

todo o meu corpo

seu espaldar.”

Mulher de pedra,

que é do menino?

“Vento do tempo

quebrou meu seio

para o arrancar.

A mim, deixou-me.

A ele, levou-o.

(Há algum lugar?)

Desde o Principio,

comigo vinha.

Meu Nascimento

nele nasceu.

Foi-se – por onde? –

tudo que eu tinha.

Ele era pedra

da minha pedra,

porém é certo

que nunca soube

se era bem meu…”

– In: Poesia CompletaVaga Música

Recomendamos para aprofundar este tema: assistir à peça “Não Posso esquecer”(em cartaz em Goiânia) e admirar a escultura de Victor Brecheret, chamada “O sepultamento” (Cemitério da Consolação, São Paulo).

 

Amamentação e Medo da Morte

Era ainda estudante de psicologia quando ouvi o seguinte relato: um garoto de 5 anos havia perdido seu avô. A explicação que lhe foi dada dizia que “o vovô era velhinho e, por isso, faleceu”. A partir daí o garoto se recusava a comer. Perguntado sobre isso, respondeu: “Se eu comer, eu cresço. Se eu crescer, eu fico adulto. Se eu ficar adulto, eu viro velhinho…e morro. Eu não quero morrer. ” Esse atrelamento tão radical entre dois núcleos fundamentais da existência humana, nutrição e morte, encontrei no atendimento à família de uma bebê recém-nascida. A queixa da mãe era de diminuição da produção do próprio leite (hipolactia), com recomendação pediátrica de complementação das mamadas.

Este atendimento foi realizado em outubro de 2008, a uma família que mora em um distrito popular, vizinho à São Paulo, que acolhe principalmente operárias e operários de fábricas, pequenos comerciantes e prestadores de serviços domésticos. Bairro de ruas estreitas e vielas, de pequenas praças e pouco verde; bastante ocupado por construções de alvenaria simples. Lugar povoado de crianças brincando nas ruas, grupos de estudantes de diferentes idades com suas mochilas nas costas, senhoras e senhores mais velhos conversando sentados em degraus nas calçadas estreitas, mães com bebês no colo que vão ou voltam do posto de saúde. Bicicletas, peruas, motos, cachorros, pombos e pipas compõem também o colorido movimento desse bairro vivaz.

Tudo isso, porém, é fortemente limitado por portas e portões inteiriços de placas metálicas, grades e cachorros ferozes que, confinados nos pequenos quintais das moradias, encarregam-se de protegê-las. Encontrei a numeração da casa que procurava diante de um desses portões inteiriços. Avistei um vão recortado no metal que permitia ler os nomes dos moradores daquele quintal coletivo, fixados sobre quatro interruptores de campainha. Todos eles pertencem à família de Wilson, pai da Beatriz, a criança recém-nascida. Toquei a campainha identificada com o nome dele. Ouvi uma voz feminina chamando por Camila, a mãe da recém-nascida Beatriz. Era a voz de Dona Maria, a avó materna que havia pedido dispensa do serviço naquele dia, para ajudar a filha e que, agora avisava-a de minha chegada.

Passados alguns instantes, Camila abriu o portão. Cumprimentamo-nos. Uma estreita escadaria subia à nossa frente unindo as quatro casas dessa moradia coletiva: a da avó paterna, a de dois tios paternos e a de Camila, com seu marido Wilson e com a pequena Beatriz, que ficava no piso térreo. Camila tranquilizou-me quanto ao cachorro que latia intensamente, dizendo que estava preso e que Beatriz não acordaria com seus latidos. Já se acostumara. Além de um pequeno banheiro na área externa, a casa possui dois cômodos internos: uma cozinha com uma pequena mesa para refeições e um quarto de casal com o berço de Beatriz. Tudo estava muito limpo e caprichado, toalhinhas e panos pintados, cantinho da Beatriz pensado e decorado com decalques infantis na parede. Espaço pequeno e modesto, cuidado com zelo e carinho.

Camila tem 24 anos, namora com Wilson desde os 18, casaram-se a 4 meses quando, então, mudou-se para esta casa, bairro novo para ela. Antes disso, morava com sua mãe e seu pai em outro município. Várias vezes queixou-se de não estar acostumada nesse bairro e de precisar de condução para ver seus pais. Tal insistência ressoava em mim como um pedido de amparo: Camila parecia sentir-se só em um lugar novo para ela e nas suas novas funções femininas, de mulher casada e de mãe.

Quando entrei na sala/cozinha, Dona Maria, a avó materna, estava bastante agitada. Havia derrubado o coador de café com água fervente sobre si mesma. Embora nada grave tivesse acontecido, Dona Maria ficou bastante constrangida e atrapalhada com a situação. Tranquilizei-a, ajudei-a nos primeiros socorros e, brincando, disse que podia esperar pelo próximo café. Esta pequena ocorrência sinalizava certa ansiedade de Dona Maria. De fato, ela estava agitada. Já a nenê, Beatriz, continuava a dormir no outro cômodo.

Camila, depois de trazer uma camiseta limpa para a mãe, sentou-se e, ao contar que há dois dias passou pelo pediatra que a orientou a complementar as mamadas porque a nenê havia ganho apenas 35 g em 14 dias, começou a chorar ininterruptamente. Aos soluços dizia que não era boa mãe, que não conseguia produzir leite, que a nenê havia passado fome, que toda vez que olhava para ela se sentia mal, culpada em dar outro leite e culpada em dar “um peito seco sem nada”… Ela estava inconsolável, aos prantos.

Dona Maria vendo a filha assim, adiantou-se e, empenhada em consolá-la, carinhosamente disse: “Ser mãe não é fácil e ela ainda veio morar longe”. Respondi: – Devagarinho e com ajuda, ela irá aprendendo a cuidar da nenê e irá se acostumando com este lugar, novo para ela. Dirigindo-me a Camila, falei: -Do mesmo modo que você está preocupada com a Beatriz que não ganhou peso suficiente, sua mãe está preocupada com você. Voltando-me para Dona Maria: – Dona Maria, não se preocupe, não, as mães logo depois de ganharem nenê choram muito. Dona Maria interrompe-me: “Ah se sei! Chorava todo dia da gravidez dessa menina (apontando para a Camila), ela nasceu de sete meses, acho que de tanto eu chorar. É que em 1985 perdi meu primeiro bebê no 6º mês de gravidez; não sabia que a bolsa tinha rompido, nem sabia que a bolsa podia vazar devagarinho. Quando vi, já era tarde. Aconteceu que eu logo engravidei da Camila em 86, e pronto: o medo de perder de novo! Quanta aflição meu Deus! ” Seus olhos marejaram. Comecei a entender a agitação que havia observado no início do atendimento: Dona Maria, revivendo experiências passadas, também se sentia desamparada.

Dona Maria não percebeu que Camila se calara. Embora não estivesse mais chorando, parecia “desligada” das queixas de sua mãe, como que cansada de ouvir as mesmas coisas, sempre a mesma história, e como se suas dores tivessem que dar a vez – ao que parece, mais uma vez – às dores de sua própria mãe.

– Camila, acho que para sua mãe você ainda é setemesinha. Ela está com vontade de chorar como você que, agorinha mesmo, estava chorando pela Beatriz. Uma achando que a outra é muito ‘fragilzinha’ e que irá morrer…

Prontamente Camila me interrompeu e tomou a palavra:

– Quando saí do Posto de Saúde com a nenê, a minha falou desesperada: “Essa menina está muito miúda, demais. Ela pode ter desidratação, vai acabar ficando internada. Pelo amor de Deus vamos dar leite logo para essa menina! É horrível a dor de perder um filho. O que eu passei não quero de jeito nenhum que você passe”. Fiquei desesperada ouvindo isso, completou Camila – e pensei: Não tem mais jeito não, vou desistir de dar o peito.

Dona Maria chorou ao ouvir o desabafo de sua filha, parecia ter compreendido a frustração de Camila em não dar de mamar, e disse: “- Eu só não quero que ela passe pelo que eu passei…”

Devolvi: – É que quando nascem os netos, as avós relembram o que viveram, tudinho de novo. Mas nada é tão igualzinho assim. Dona Maria é a mãe da Camila e a avó da Beatriz. E Camila é a Camila, mãe da Beatriz. E, agora o mais importante: a Beatriz é nenê e a Camila é mãe recém-nascida e está na quarentena precisando de apoio, para sentir menos medo. Se bem que sentir medo faz parte de ser mãe, se não como é que você protegeria a Beatriz, Camila? Ela, quando começar a engatinhar, vai querer colocar o dedinho na tomada. Se você não sentir medo por ela, não irá protegê-la. Então medo faz parte. Dirigindo-me à Dona Maria, completei: – A Camila está com medo que a Beatriz morra. A senhora perdeu um bebezinho na sua primeira gravidez. Mas sabe aquela nenezinha que nasceu com sete meses? A sua segunda filha? Ela está aqui na nossa frente, forte e saudável, teve sua primeira filhinha e pode amamentar (enfatizei o pode).

Dona Maria suspirou como se estivesse reconhecendo a Camila não como a filha prematura que lhe assustara, mas como adulta, mãe recente, desejosa de amamentar e frustrada com a perspectiva de não o conseguir.

– Seu leite secou totalmente? – Perguntei à Camila.

– Não, estou só complementando. Mas, tem um ‘nadica’ de nada. Ela mama só umas gotinhas… (voltou a chorar compulsivamente).

– Porque você está chorando agora?

– É que eu queria muito amamentar…

Fiz silêncio. A frase pareceu-me importantíssima; deixei-a ressoar e o choro ir terminando.

Enquanto aguardava, buscava entender aquele choro: por que Camila está chorando agora? Parece que o medo da morte da nenê – o medo que ela sente, não o que sua mãe sente – tornou-se consciente e, com isso, a vontade de amamentar pode transparecer lúcida e cristalina. Chorar estaria “limpando” o desejo de amamentar? Pensava, ‘metaforizando’, que o medo atávico e, neste caso, transgeracional da morte da nenê, havia invadido e soterrado o impulso materno primitivo de amamentar. O choro de Camila como que umedecia esse impulso tentando salvá-lo, mantendo-o vivo. Chorar era a forma de hidratar o impulso primitivo de nutrir, ressequido pelo peso “moral” colocado sobre ele (pensamentos como: eu devo amamentar, isto é ser boa mãe). Chorar era a forma de fazer crescer o desejo de amamentar. A consciência do medo da morte da filha permitiu distinguir e afastar duas regiões vitais sobrepostas: a morte e a nutrição. A descoberta de uma ‘pre-ocupação’ com a morte não soterraria mais a ‘ocupação’ com o aleitamento. Com isso, a vontade de amamentar brotou translúcida. A chamada “força de vontade”, também necessária à manutenção do aleitamento materno, pressupõe a consciência dos conflitos e das histórias familiares. Camila precisava fortalecer ao máximo seu desejo de amamentar, para superar não apenas seu próprio medo da fragilidade ou da morte da Beatriz, mas o medo impróprio, que não era dela, o medo que Dona Maria carregava de perder filhos.

A partir daí, da afirmação consciente de sua vontade (“é que eu queria muito amamentar”), Camila estava pronta, firme em sua autonomia (poder de decisão), para receber orientações sobre a manutenção do aleitamento materno, sobre a possibilidade de reversão da complementação.

Cerca de quinze dias depois, retornei à sua casa. Ao encerrar o atendimento, pedi sua autorização para apresentar sua experiência em um congresso. Ela concordou e disse:

– Conta lá que tudo mudou. Olha só, toda vez que eu dava mamadeira, eu falava repetindo chateada: Mamãe não pode te dar o peito. Agora eu pego a Beatriz no colo e digo: vamos mamar no peito da mamãe, bastantão, um tempão, um montão e só depois ganhar mamadeira.

A positividade da segunda forma e a construção da oração na primeira pessoa do plural, “vamos mamar”, apontaram para o elo feito entre elas!

 

 

Experiência de poesia: ALEGRIA

Rita, assessora da Educação Infantil Ambiental, da Secretaria Municipal de Educação de Novo Hamburgo (RS), é mãe do Francisco, que está com 3 anos. Ela foi uma das organizadoras do Congresso da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP), em abril/2016, na sua cidade. Enviou-me, de presente amigo, a gravação da declamação poética a duas vozes, mãe e filho pequeno, que foi providenciada como homenagem a Manoel de Barros no evento. Torno público seu depoimento narrando a experiência da declamação conjunta e a gravação feita. Como diria o próprio Manoel: “Exercícios de ser criança”. Ou, sob efeito inspirador da experiência calorosa com a palavra: a alegria de fazer poesia!

Escreveu-me ela:

Iríamos homenagear Manoel de Barros no Congresso da OMEP. Como ele fala tão lindamente da infância queríamos que as crianças “dialogassem” com ele. Assim pensamos nas gravações.

Com Francisco, o processo foi assim: apesar de lermos histórias diariamente, eu ainda não tinha lido Manoel de Barros para ele. Então, escolhi um texto menor, mais simples, com palavras mais fáceis. Achei que ele compreenderia melhor. Escolhi este:

“Meu casaco é da cor do sol. Uma andorinha queria trocar o casaco dela comigo; mas o casaco da andorinha era cinzento. Ela pensa que eu sou maluco?”

Francisco adorou, mas, na hora de gravar, ele achava a última frase tão engraçada que ria muito e NUNCA conseguia falá-la, de tanto rir.  Eu disse a uma colega de trabalho que não estava conseguindo finalizar a gravação na voz dele, por essa razão. Então, ela sugeriu criarmos um ambiente brincante e tentarmos a gravação de outro texto: “Caramujos”. Arrumamos papéis, lápis de cor, canetinhas, tesouras. Fomos lendo, conversando, desenhando… e gravando.

E, novamente, ele não queria dizer a última frase!!! Risos.

Depois de algumas tentativas, decidimos que faríamos uma montagem intercalando a minha voz e a dele, então li o texto inteiro, de vez. Na última frase, ele se manifesta alegremente: ela cabe aqui também!!! E foi aquela alegria!!!

Foi mais ou menos assim…

Em nome da equipe de psicólogas Primeiro Movimento: Obrigada Francisco, obrigada Rita.

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

AMAMENTAÇÃO E LIBERDADE

LIBERDADE E AMAMENTAÇÃO

 

Controlar é uma ação de poder, cuidar é um gesto de amor. A passagem da primeira para a segunda atitude é um longo aprendizado no caminho de ser pai e mãe. O desafio, porém, aparece muito cedo e, de cara, muito profundamente. Por exemplo, no início da amamentação.

A queixa da Mariana, mãe do Felipe (35 dias), foi que o bebê havia mamado bem apenas nos 15 primeiros dias sendo que, nos últimos 20, veio se desinteressando do peito gradativamente e, agora, a amamentação tinha se tornado uma guerra: ela insistindo em amamentá-lo e ele se negando a isso.

– O Felipe só aceita mamar se o peito estiver bem cheio de leite – o que não tem sido nada frequente, talvez porque introduzimos a mamadeira, por orientação do pediatra na última consulta, na semana passada. Fiquei tão mal com isso! Não queria dar mamadeira. Não teve jeito. Mas é que o Felipe não quer saber de peito. Mama um pouquinho e já larga. Pior ainda, o leite tem que sair rápido, se não ele já se debate, vira a cabeça para lado oposto, fica agitado e rejeita o peito. O meu marido brincou que ele puxou a mim: executiva quer tudo rápido!

Mariana dizia isto com uma mistura de frustração, impotência e desânimo.

– Como ele me rejeita se estou fazendo tudo certinho? Pensei que o parto seria uma experiência difícil, mas o aleitamento é muito mais: a gente não controla nada, nada acontece como a gente espera.

E, com o semblante circunspecto reconhecia em si o que a entristecia:

– Eu quero dar de mamar, mas o que que adianta? O Felipe não me aceita!

Entre a observação de um comportamento do bebê (rejeitar o peito) e a leitura afetiva feita (ser rejeitada, não se sentir aceita) existe uma boa distância, mas Mariana parecia rondar esse núcleo da aceitação/rejeição e reduzir sua experiência materna ao seu peito e ao aleitamento:

-Desde que o Felipe nasceu eu me tornei um peito ambulante.

A impressão que eu ia recebendo ao escutar Mariana era a de alguém que se sentia aprisionada, como se, transitando pela “estrada materna”, tivesse se deparado com uma rotatória de retorno e, sem enxergar saída, girasse perdidamente em torno de um mesmo ponto: não era possível retornar e não era possível avançar. Que rumo tomar? Seu caminho de ser mãe estava obscurecido por sombras afetivas e o único foco de luz era a amamentação. Daí a auto cobrança acentuada quanto ao sucesso do aleitamento, como se ela formulasse: “se conseguir amamentar, estarei na via certa de ser mãe”.

Um ponto me intrigou: o que teria acontecido por volta do 15º dia do bebê que levou o aleitamento a desandar? Mariana respondeu:

– Não sei, havíamos saído da consulta pediátrica. Eu estava contente, aliviada, tipo missão cumprida. Felipe tinha engordado bastante, mais do que o esperado. E, não sei o que houve, naquela mesmo dia, à noite, começou essa história de chorar muito depois de mamar. Pensamos até que fosse cólica, cansaço por ter saído de casa para ir ao médico, fome… pensamos em tudo. Nos dias seguintes foi piorando: virava o rosto, batia no meu peito, se debatia e chorava. Ah! Virou essa guerra que continua: eu querendo dar o peito e ele se recusando a mamar.

– Na primeira mamada depois da consulta com o pediatra, você se lembra como estava se sentindo?

-Eu lembro que me senti muito aliviada na saída da consulta. Mas na mamada…

– Assim: “Ufa! Já sei que consigo cuidar do meu bebê! ”

– É. Ele ter engordado foi gratificante.

– Daí, então, por estar aliviada, talvez você tenha se sentido mais relaxada e, na mamada seguinte, tenha podido ver alguma coisa diferente, o foco saiu da eficiência da mamada. O que será que você viu então?

– Não sei. Ele começou a chorar e eu só pensei em cuidar dele.

Lembrei-me de uma máxima popular que escutei no interior de Minas Gerais e tive certeza do rumo dessa conversa terapêutica:

_ Você já ouviu o provérbio: “Desde que pari minha boca não enchi”? Na sabedoria popular a mãe se coloca depois do filho, na ordem do cuidado. Como o Felipe estava fortinho e engordara bem, você poderia cuidar de alguma outra questão, mais sua. Talvez um pouco antes dele chorar você…

Mariana me interrompeu:

-Eu estava muito cansada também, queria chorar…

-Chorou?

-Ele chorou.

-Daí você foi atende-lo e se esqueceu de chorar? Você chorou? Esqueceu-se também do motivo do seu choro?

-Eu estava pensando em como minha vida mudou. Eu, executiva gerindo um time de doze pessoas, trabalhando fora desde os 19 anos, não sabia que ter um filho significava uma rotina tão doméstica, enfiada no apartamento 24 horas por dia, fazendo só cuidar de bebê, sem sair de casa, tendo que dar de mamar, ficar à disposição…Can-sa-da e me sentindo…posso falar? Prisioneira, refém de um bebê.

Mariana começou a chorar intensamente, aquele choro urgente, de 20 dias atrás. Quando se acalmou, comentei:

– Acho que rompeu a bolsa lacrima…. Libertou-se a refém…

– Sabe o que eu pensei agora, chorando? Que eu estava vivendo o meu próprio parto como mãe. O choro do Felipe fica me chamando, me obrigando a ser mãe. Mas não é ele quem controla isso. Eu quis ser mãe. Hoje parece que eu decidi, de novo, ser mãe.

-A questão não é quem controla quem. O desafio é aprender outra língua, que não é a do controle. A gente não manda no bebê. E ele só manda na gente se a gente estiver nessa perspectiva do controle. Olha o que aconteceu com você agora: chorando, deixando uma emoção ir se dando, deixando alguma coisa meio estranha a você se processar, você chegou no seu ponto atual materno, “decidiu de novo ser mãe”. De novo quer dizer “com novidade”, nascimento. Já ouviu aquela expressão “vem vindo novidade” para dizer que alguém está grávida? O Felipe estava chorando por dois: por ele e por você! Mãe recém-nascida precisa ficar um pouco no ninho, tal como o nenê. Quantas mulheres se enganam e procedem um desmame precoce acreditando que se verão livres para sair!? Mas, o estado recém-nascido de ser não é definitivo. Já, já você estará passeando por aí, às vezes com o Felipe, outras sozinha, outras ainda com seu marido, com sua família, com amigos. O vínculo com o nenê é fundamental, a amamentação o fortalece. Esse vínculo aprisiona apenas quando a perspectiva de controlar a vida se sobrepõe à de cuidar dela, seja a do filho ou da nossa própria. Hoje, aqui, você se cuidou. Chorar “descontroladamente” era necessário para aliviar a sensação de aprisionamento e chegar no seu lugar de mãe.

– Eu e o Felipe teremos tempo. Eu percebi que eu já queria que tudo estivesse pronto e certo. Dá para retirar a mamadeira e ficar só no peito de novo? Hum, de novo…

Saí deste atendimento pensando que a amamentação é um caminho muito particular de liberdade. Por isso amamentar é maior que um ato, é um gesto: asas fortes estão por vir!